Festivais - ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
     
 

PUBLICADA EM 19.09.15

Myrna Silveira Brandão

“As Mil e uma Noites”, de Miguel Gomes, foi aplaudidíssimo na prévia para a imprensa da 53ª edição do Festival de Nova York, onde o diretor português já tinha tido uma ótima receptividade em 2012 com “Tabu”.

O novo filme de Gomes é um épico contado em três atos: O Inquieto, O Desolado e O Encantado, com duração total de 6 horas e 21 minutos. Essa verdadeira epopeia portuguesa tem como base a estrutura narrativa do clássico As Mil e uma Noites.
 
A trilogia é uma forma totalmente inovadora de fazer um filme político e  uma mudança na arte de contar histórias.
 
Trabalhando um ano inteiro com uma equipe de jornalistas que enviavam notícias de todo o país sobre a crise social e econômica em Portugal, Gomes transforma eventos reais numa fábula, e a expressa através  de Scheherazade (Crista Alfaiate), a mítica personagem do conto persa.
 
As histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus”, como são descritos os governantes de Portugal, servem de substituição aos contos narrados por Scheherazade para entreter o cruel rei Shariar e preservar sua vida.  
 
O primeiro ato, O Inquieto, mistura material documental sobre desemprego e eleições com visões surrealistas de baleias e galos. O segundo, O Desolado, é contado como um drama Brechtiano num julgamento ao ar livre no qual os testemunhos ficam cada vez mais absurdos. O terceiro, O Encantado, talvez seja a parte mais excêntrica e mais encantadora quando a história de Scheherazade se mistura a uma crônica de um caçador de pássaros na área de Lisboa.
 
O filme teve muito sucesso em Cannes, onde foi lançado na  Semana dos Realizadores e ganhou  o prêmio da Fipresci no Festival Internacional Novos Horizontes da Polônia,
 
Leia as declarações de Gomes sobre a ligação da história  com o livro, o processo de filmagem e o cerne do filme.   
 
Sobre a origem de As Mil e Uma Noites
 
“A ideia era fazer coincidir dois objetivos, criando um dispositivo cinematográfico que se aproximasse da estrutura do livro.  Tenho com ele uma relação que vem da adolescência.  Queria construir algo que fosse tão rico quanto As Mil e Uma Noites, com todas as suas bifurcações ficcionais e que, ao mesmo tempo, fosse uma radiografia do estado de alma de um país, durante o período de um ano, entre Agosto de 2013 e Agosto de 2014, quando Portugal viveu – e continua a viver – uma grave crise econômica e social”. 
 
Sobre o significado dos três atos
 
“O primeiro chama-se Inquieto porque há motivos de inquietação que vão surgindo às personagens em várias histórias. O segundo O Desolado porque já passou a inquietude. Há qualquer coisa que parece estar perdida e partida sem possibilidade de reerguer-se. É o ato trágico, o menos crente em qualquer redenção. Por fim, O Encantado (que no início chamava-se Toda a Memória) é a memória de cada um dos personagens e traz a lembrança de outra cidade. A maior parte desses personagens nasceu em bairros de lata (favelas) – que não eram necessariamente melhores – e foram realojados em bairros sociais que não gostam e sentem saudades dos locais em que nasceram. Por isso as sequências remetem para outros tempos e tratam da memória de coisas que já não existem.  Para mim, isso concentra o que era a proposta das Mil e Uma Noites: fazer coabitar um tempo presente com todo o conjunto de tempos imaginários.
 
 
Sobre os comentários de ser um filme militante
 
Para mim, filmes militantes tentam convencer-nos de que aquilo é bom e eu acho difícil tentar impor meus valores aos espectadores.
 
 
Sobre o método inovador da construção do roteiro e  o processo de filmagem
 
Havia três jornalistas que recolhiam informações sobre tipos variados de acontecimentos e informavam o “comitê central”, um grupo que existe desde Tabu e que é constituído pela equipe nuclear do filme. Essa equipe deveria, de forma a mais rápida possível, preparar o roteiro – que poderia surgir da evocação de determinada história, determinado acontecimento real, transformando-o numa ficção. Estávamos ancorados na realidade do que acontecia no país.
 
Sobre o cerne do filme
 
Um dos episódios responde a isso.  Chama-se Crônica de Fuga de Simão sem Tripas e não Crônica da Fuga.  Se fosse crônica da fuga seria uma coisa concreta, isto é, o modo como ela se processa.  Enquanto crônica de fuga tem a ver com os sonhos e com a possibilidade de escapar à realidade. Para mim, aí está condensado o projeto do filme.  A insônia não resulta do delírio que o cinema propõe, através da ficção. A fantasia não é aqui algo que escape à realidade, ela é contaminada pelo contexto político e por uma espécie de estado de alma que o filme tenta captar de diversas maneiras, em diferentes momentos.