Plano Aberto - O.K. Corral: Duelo Histórico ou Mitomania Hollywoodiana?
 

Quando John Ford realizou “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine, 1946),  também estava impedindo – certamente sem saber –  que Tombstone se transformasse em mais uma das centenas de cidades fantasmas que hoje existem em todo o oeste americano. 
 
Ao contrário, essa pequena cidade do Arizona virou Monumento Histórico Nacional e – graças a Ford e a Hollywood – está imortalizada nas telas e fatura alto com o turismo temático.
 
Tombstone, que tem por slogan “Uma Cidade Dura Demais para Morrer”, é visitada por turistas cinéfilos de várias partes do mundo que querem conhecer o vilarejo com pequenas casas de madeira e adobe  atraídos pelo carisma de um duelo que está completando 134 anos  e pela mitologia que o cinema criou em torno do fato.
 
Às quatorze  horas daquela tarde  cinzenta  de outono, no longínquo  1881, o O.K. Corral, um pequeno terreno no centro da cidade, foi o cenário de um tiroteio que mudaria para sempre a história de Tombstone. 
 
De um lado, “Doc” Holliday e os irmãos Earp (Wyatt, Virgil e Morgan);  do outro, Billy Clanton, seu irmão mais velho Ike, e seus amigos Tom e Frank  McLaury.
 
Ao final do duelo, que durou não mais do que 30 segundos, Billy, Tom e Frank estavam mortos e  Virgil e Morgan feridos. Wyatt e Doc nada sofreram.  Ike, o irmão mais velho dos Clanton,  correu e refugiou-se na casa do fotógrafo Fly, que ficava ao lado do O.K. Corral.  Alguns dizem que Ike estava desarmado; outros, que ele simplesmente se acovardou e disparou em busca de proteção.
 
Seja lá como for, desde aquela data até hoje, o tiroteio vem sendo recriado pelo cinema em cima da mesma versão: Wyatt Earp e seus amigos enfrentaram e derrotaram o “terrível bando” dos Clanton e McLaury.  Mocinhos contra bandidos e fim de papo.
 
O episódio foi tema do livro Passado Imperfeito, no capítulo “A História de Wyatt Earp”, escrito por John Mack Faragher.  O livro, organizado por Mark C. Carnes e já lançado no Brasil,  faz uma análise de vários filmes para investigar a coerência entre aquilo que o cinema mostra e o que  a história registra.
 
Faragher atribui a Stuart Lake, um antigo roteirista, a façanha de ter transformado Wyatt Earp,  de uma figura sem a menor importância histórica e caráter para lá de duvidoso, em um personagem heroico e lendário, o que acabou também por alterar fatos reais ocorridos durante a ocupação do oeste americano.
 
O escritor, no entanto, cai na mesma armadilha em que caíram os roteiristas hollywoodianos:  aprofunda sua análise sobre Earp mas passa batido sobre a outra banda da história e do tiroteio, aquela que envolve os Clanton e os McLaury.
 
As duas entrevistas a seguir dão bem ideia de uma história que parece se recusar a colocar “Fim” após a última cena.  O principal historiador de Tombstone , Ben Traywick e o ator Terry Ike Clanton, descendente direto de uma das famílias envolvidas no antológico duelo têm opiniões bastante diferentes do que realmente aconteceu no O.K. Corral.
 
A História Oficial
 
Ben T. Traywick, autor de “The Chronicles of Tombstone” é uma figura super conhecida na cidade.  Engenheiro químico que participou do projeto do míssil Polaris, ele é um daqueles aposentados pacatos, bastante comuns no oeste americano, e dedica todo o seu presente ao passado de Tombstone.
  
Vestido a caráter como um autêntico caubói , Traywick nos  recebeu em sua casa, um misto de museu e biblioteca, já dando um conselho:
 
“Não acreditem em tudo o que dizem em Tombstone . As pessoas aqui  têm a mania de aumentar as coisas. Ninguém foi enforcado nessa árvore aí em  frente do Epitaph e  a população daqui nunca passou de 5.000 habitantes”, foi logo exemplificando e mostrando a árvore e o prédio do outro lado da rua, onde fica o lendário “Tombstone Epitaph”, o jornal mais famoso do velho oeste.
 
“Nem essa lista do Historama ,com 25 filmes feitos  sobre Tombstone, os Earps e o O.K. Corral, é verdadeira”, afirma com um sorriso maroto, “o número certo é 40 ”.
 
 O Historama é um conjunto de salas onde predominam os posters e cartazes de filmes sobre a cidade, onde o turista paga (como em quase todo lugar “histórico”) um dólar e meio pela entrada. 
 
Traywick diz que é muito procurado por pesquisadores e cineastas que querem realizar filmes sobre Tombstone.
 
” Gente boa e gente ruim”, define rindo. “Uns estão interessados na nossa história; outros só querem saber bobagens sobre a Tombstone de antigamente”, diz. “Onde ficava a zona de meretrício parece interessar mais a algumas pessoas do que onde viviam as pessoas famosas daquela época”, lamenta.
 
Muita gente me procura. Na minha idade, isso acontece. Aparece gente de todo tipo”.
 
Sobre o episódio do famoso duelo, para ele vale a versão oficial: “o duelo aconteceu porque os caubóis quebraram a lei.  Ninguém podia andar armado nos limites da cidade”, diz, simplificando e pondo uma pedra sobre o assunto.
 
Quando perguntamos se ele não acha estranho que não existam fotos sobre o duelo, Traywick concorda:  “Acredito que o fotógrafo Fly tirou  fotos da cena após o tiroteiomas os Earps devem ter confiscado”, imagina.
 
“Mas os caubóis eram arruaceiros e faziam negócios estranhos com gado. Havia muito roubo e contrabando de gado daqui e de lá do México”, logo acrescenta, deixando no ar a dúvida se estava se referindo aos Clantons ou a outros fazendeiros.
 
Para Traywick, a exemplo de outros historiadores,  os Clantons são sempre “os caubóis”, tão anônimos como os extras dos filmes “westerns”. 
 
Com muita amabilidade, Traywick encerra nossa conversa nos convidando para conhecer sua casa e reafirmando sua posição favorável aos  Earps.
 
Os Earps estavam certos, estavam do lado da lei e da ordem”, afirma convicto. Mas logo acrescenta cuidadoso:“ Pelo menos, é isso que eu acredito”.
 
A Versão dos Clanton
 
Terry Ike Clanton, 40, é sobrinho em 5O grau dos duelistas Ike e Billy Clanton.
 
Ator e locutor bissexto de corridas de Fórmula Indy, Terry dedica grande parte de seu tempo para corrigir Hollywood sobre a história de Tombstone e para “limpar” o nome de sua família.
 
Para ele, a causa direta do duelo foi uma tentativa de esconder um duplo assassinato, ocorrido num assalto a uma diligência em que o cocheiro e um passageiro morreram, e no qual Doc Holliday, amigo e comparsa de Wyatt Earp, estaria envolvido.
 
“O que aconteceu foi o seguinte:  Na noite anterior ao duelo do O.K. Corral, Ike Clanton bebeu demais no Oriental Saloon e acabou dizendo a Doc que sabia do envolvimento dele no assalto à diligência.  Houve uma discussão e Doc ameaçou Ike”, explica Terry.
 
No dia seguinte, Virgil Earp, chefe de polícia de Tombstone, pediu justamente a Doc, jogador profissional, alcoólatra e conhecido pistoleiro, para ajudá-lo a desarmar os caubóis, acrescenta  Terry, argumentando  que, se o chefe de polícia queria manter a paz, jamais poderia ter feito isso.
 
“A minha opinião é que esse ato irresponsável é a razão principal pela qual os Earps teriam que ser responsabilizados pelo assassinato do meu tio Billy  Clanton e dos irmãos McLaury ”,  acusa.
 
Quanto à razão porque os filmes sobre Tombstone sempre mostram os Earps como heróis e os Clantons e os Mc Laury como foras da lei, Terry tem exemplos para mostrar porque essa versão não passa de mera ficção, sem nenhuma base histórica.
 
No filme Tombstone, por exemplo, colocar Doc Holliday duelando e matando Johnny Ringo pode ter contribuído para a história, mas isso simplesmente não aconteceu. Ringo, na verdade, suicidou-se, sozinho, embaixo de uma árvore nas montanhas.  Mas, muito pior do que isso, foi John Ford , quando dirigiu “Paixão dos Fortes”, ter decidido que Tom e Frank McLaury não tinham nenhuma importância para serem colocados no roteiro”, revolta-se.
 
“Moral da história: parem de acreditar nas histórias de  Hollywood  sobre Tombstone”, dispara.
 
Terry também tem sua versão sobre o fato de Holliday e os  Earps  terem sido inocentados pelo tribunal de Tombstone:
 
Após o duelo, foi aberto um inquérito e não consta que alguém tenha deposto contra eles. Acho que é razoável chamar o inquérito do Juiz Spicer de  “corte canguru”,  diz ele,  comparando o inquérito com o canguru, que esconde os filhos na barriga.
 
Terry afirma que a população de Tombstone ficou ao lado dos Clanton.  E acredita que os Earps e Doc Holliday destruíram as fotos do pós-duelo porque elas poderiam prejudicá-los no julgamento.
 
“Eu acho que o Fly (o fotógrafo que tinha um estúdio ao lado do O.K. Corral) jamais perderia uma oportunidade dessas. Ele era um profissional muito competente e as fotos certamente deixariam os Earps muito mal”, suspeita.
 
“Apesar do que Hollywood mostra, os Earps não eram estimados em Tombstone, sobretudo após o duelo do O.K. Corral”, encerra Terry, mais uma vez desmentindo a história oficial do cinema.
 
O Palco da Lenda
 
Visitar Tombstone é uma viagem ao tempo das diligências, com tudo que se tem direito: lá está, perfeitamente preservada , a antológica Allen Street,  rua principal de Tombstone, com suas calçadas de tábuas corridas e  casas de madeira de onde não seria surpresa ver sair de repente um personagem vivido por John Wayne , Gary Cooper ou Randolph Scott.
 
No início da Allen surge o palco onde tudo aconteceu: o O.K. Corral, cercado por um enorme muro de adobe. Seguindo em frente, o visitante começa um quase inacreditável passeio através da fantasia do velho oeste: um depois do outro, aparecem o Crystal Palace, o Big Nose Kate Saloon e o misto de bordel e teatro Bird Cage Theater.
 
Ao lado do O.K. Corral, fica o Historama, local onde é contada a história de Tombstone e do famoso duelo. Em suas salas, porém, ao invés de mapas, retratos de antigos governantes ou documentos históricos, predominam cartazes de “westerns”, com destaque especial para dois filmes menores: “West of Tombstone”, de Howard Bretherton e “Tombstone, a Justiça está Chegando”, de George Cosmatos.  Na parede de uma das salas está afixada uma relação de filmes (veja box) relacionados com Tombstone e/ou suas lendárias figuras.  Nas lojas das cidades estão à venda muitos imãs com cartazes de filmes.
 
É um sem fim de ícones e monumentos do faroeste. Numa transversal, a edificação do Tombstone Epitaph, com suas velhas impressoras em exibição. Perto, o velho e bem preservado prédio do Tribunal, onde  se julgava, se perdoava ou se enforcava aos montes. No terreno dos fundos, uma cópia fiel de cadafalso, com duas forcas ameaçadoras soltas no ar. De lá, os condenados iam direto para suas covas no cemitério mais famoso do oeste: o Boot Hill. Tão famoso que nos Estados Unidos a palavra “boothill” virou sinônimo de local de enterro.
 
Uma visita a Boot Hill é algo de inesquecível. As lápides (tombstones) e as identificações daqueles que estão enterrados ali são retrato e testemunhas da época.
 
 “Aqui estão Dan Dowd, Red Sample, Tex Howard, Bill Delaney e Dan Kelly, enforcados legalmente em 08 de março de 1884”; “aqui jaz Lester Moore. Quatro balas de um 44. Nem menos, nem mais; “John Heath, retirado da cadeia pública e LINCHADO (assim mesmo, em letras enormes) por uma turba em Tombstone. 22 de fevereiro de 1884”.
 
No meio de dezenas de placas como essas, aparecem três outras colocadas lado a lado numa cova maior e bem cuidada : “ Billy Clanton, morto em 26  de outubro,1881”; “Frank McLaury, morto em 26 de outubro,1881”; “Tom McLaury, morto em 26 de outubro,1881”. Uma  placa maior não deixa dúvidas e como que resume a tragédia: “Billy, Frank e Tom. Assassinados nas ruas de Tombstone”. E imortalizados por Hollywood, poderia ser acrescentado.
 
Afinal , como lembra a frase escrita numa camiseta à venda numa loja de souvenirs da Allen Street , “When you kill your enemies in a group, call Hollywood ”.
 
Alguns filmes com o tema: 

1. Frontier Marshall (34), de Lewis Seiler  - George O’Obrien interpreta Michael Earp.
2. In Early Arizona (38), de Joseph Levering, com Harry Woods
3. Winchester 73 (50), de Anthony Mann, com  James Stewart e Shelley Winters.
4. Duelo de Morte (Law and Order)  (53), de Nathan Juran,  com Ronald Reagan e Dorothy Malone.
5. Powder River (53), de Louis King (irmão caçula de Henry King), com Rory Calhoun, Corrine Calvet, Cameron Mitchell.
6. Badman’s  Country (58), de Fred F. Sears, com George Montgomery
7. Jennie Lee  Ha Una Nuova Pistola (spaguetti) - 64
8. The Outlaws is  Coming (64), de Norman Maurer
9. A Hora da Pistola (Hour of the Gun)  (67) John Sturges. Jason Robards faz o Doc Holliday.
10. Assassinato em Hollywood (Sunset)  (87), de Blake Edwards, com Bruce Willis.